O mau exemplo da magistratura

Veredito do STJ que inocenta estuprador de adolescentes provoca indignação no país. Leia matéria sobre os vícios de interpretação.

Luciano Lima Pereira

12/30/20124 min read

Para quem acompanhou os artigos publicados anteriormente, sabe que tive um ano de jejum literário, infelizmente. Mas, ensaiando a retomar minha dedicação aos artigos, um fato revoltante e de extraordinária indignação me provocou a produzir este artigo.

Claro que este artigo não faz referência aos bons magistrados, que se esforçam para fazer de nosso obscuro, engessado, arcaico e obsoleto sistema judiciário, um método menos torpe de se fazer justiça através dos mecanismos ora existentes.

Tal fato, que provocou tamanha indignação, diz respeito à decisão proferida pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), divulgada na terça-feira (27), em que os ministros da seção entenderam, por 5 votos a 3, que o homem não poderia ser condenado porque as crianças “já se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data”.

A decisão por si só apresenta diversos vícios, notórios e latentes a qualquer cidadão que esteja em seu juízo perfeito; a saber:

1. É uma verdadeira falácia a tese de que as meninas se dedicavam à prática de atividades sexuais desde longa data. Ora, considerando que exercerem tal prática aos 12 anos de idade já demonstra precocidade sexual, quem dirá ‘desde longa data’. Tais magistrados sugerem então que as práticas sexuais das meninas teve início quando: dez, nove ou oito anos de idade? [Em nome da consciência e da decência, paremos por aqui!].

2. Ainda que a tese fizesse algum sentido frente à realidade dos fatos, ela [tese] pressupõe que as mulheres que estiverem em seu pleno exercício sexual poderão sofrer estupro de delinquentes e malfeitores, simplesmente por não mais serem virgens.

3. Ato Discriminatório: Supondo veracidade e coerência nos fatos acima [o que por si só já é difícil assim entendermos] apresenta caráter discriminatório, vez que diferencia os direitos da mulher virgem para a mulher sexualmente ativa, criando diferenciação entre ambas.

TÍTULO I
Dos Princípios Fundamentais

(…)

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

(…)

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

4. Ofende, portanto, princípios fundamentais do direito, que exatamente por sua importância são protegidos pela Constituição Federal do Brasil, que estabelece no caput do seu artigo 5° que “todos são iguais perante a lei”.

TÍTULO II
Dos Direitos e Garantias Fundamentais
CAPÍTULO I
DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

5. Fere dispositivos legais do ECA: Por outro lado, é muito improvável que a decisão tenha contemplado ônus ao ente público, responsável pela reabilitação psicossocial das vítimas de abusos, conforme estabelece artigo 87 do ECA Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Título I da Parte Especial do referido diploma, que trata de uma Política de Atendimento.

Parte Especial

Título I

Da Política de Atendimento

Capítulo I

Disposições Gerais

Art. 86. (…)

Art. 87. São linhas de ação da política de atendimento:

(…)

III – serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão.

Como é de se supor, por qualquer cidadão em sua perfeita sanidade mental e intelectual, esta decisão apresenta o show de horrores com que temos que conviver, numa estrutura que carece de atualização, agilidade, demonstração do exemplar senso de justiça embutido empiricamente nas decisões e despachos proferidos pelas autoridades competentes.

A sensação de impunidade, injustiça (por vezes causadas pelo próprio Sistema Judiciário), e os maus exemplos (como este), nos jogam um balde de água fria. É uma clara demonstração de que, em se tratando de Justiça, nunca teremos a certeza de nossa devida e merecida proteção contra cidadãos inescrupulosos, cada vez mais ousados, e têm compreensão (e usufruto) as deficiências de um sistema que não mais atende aos anseios, desejos e, sobretudo, as necessidades da sociedade.

A sociedade faz o que pode, no sentido de cobrar que nossas autoridades atuem de modo mais nobre e mais louvável. É o clássico exemplo da Lei da Ficha Limpa que, em que pesem artigos que refutam dispositivos legais (como o da presunção de inocência), enviam clara mensagem aos governantes de todos os poderes e esferas de governo: “estamos cansados das barbáries praticadas impunimente pelos detentores de cargos públicos”. Vide caso recente em que Luiz Estevão fora condenado após quatorze anos depois da eclosão do escândalo do TRT do Juiz Nicolau Lau Lau…

Nem com o cuidadoso olhar da população, exemplos como a ficha limpa que, desencadeou uma série de novas iniciativas pela mesma linha de raciocínio, puderam sensibilizar ou racionalizar a decisão lamentavelmente tomada nessa terça-feira.

Pior que a decisão propriamente, é pensar que esta decisão não foi monocrática [proferida por um magistrado apenas], mas sim por um colegiado. Ademais, há mulheres [magistradas] votando em prol a este veredito. Será que, caso alguma delas ou de suas filhas ou parentes fossem vítimas de estupro, elas teriam o mesmo entendimento sobre o caso?

Sinto-me revoltado e entorpecido pelos escândalos demonstrados pelos Doutos Juízes (e juízas – vale ressaltar decisão de mulheres sobre este veredito). Não falo apenas deste caso em si, mas do que ele nos apresenta.

Este é um gesto que descortina um razoável gama de contrassensos que colocam em risco a própria razão de ser da magistratura:

A – não conhecem os princípios fundamentais do direito;

B – não entendem o papel do Estado em punir os maus elementos e restaurar a ordem (quando possível);

C – não se atentam para as conseqüências e possíveis repercussões, como a abertura de precedentes jurídicos para casos futuros;

D – a decisão tem o sabor de quem legaliza a impunidade, em especial contra crianças indefesas, ainda em processo de formação (inclusive moral e intelectual).

Além disso, não obriga o Estado a nada, fere o Estatuto da Criança e do Adolescente, “desonera” o sistema carcerário [um preso a menos] e o mais grave de tudo: não protege seus cidadãos e enfraquece a Magistratura.

LASTIMÁVEL!!!

Errar é humano, mas alguns deles são inaceitáveis e imperdoáveis.